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Vi Mértola pela primeira vez, tomando consciência dessa observação quando tinha apenas uns cinco anos de idade.
Minha mãe, ao atravessarmos o Rio Guadiana, da margem esquerda para a direita, onde ficam os poderes, o comércio, o grande volume do seu casario e população, ainda lembrava os restos da segunda guerra mundial, expressos no racionamento de géneros imposto por Salazar a toda população.
Isto obrigava as mulheres a léguas de caminho com cântaros de azeite e sacos de farinha para as fornadas de pão. Muitas vezes, regressando vazios tal como partiram de casa. Por tão longa a caminhada; por tão escassos os alimentos; por tão acre a fome dos humildes; por tão vil e cáustica a acção dos que a provocam.
Na margem esquerda, de onde se observa toda a extensão longitudinal de Mértola, artisticamente colocada sobre o promontório que liga o Rio Oeiras ao Guadiana, ainda estão hoje as fábricas de moagem de cereais implantadas por força da campanha do trigo, agitada no início do Estado Novo. Hoje só aqui estão as estruturas do edifício. Era aqui que as populações se dirigiam, percorrendo a pé ou de burro enormes distâncias, para que lhes coubessem três ou cinco quilos de farinha por família, em cada semana.
Daquela minha primeira visão de Mértola, restou-me uma sensação de tédio que só viria a dissolver-se no fluxo de promessas e generosidade exibida pela Revolução de 25 de Abril de 1974. Acontecimento que vivi já em Lisboa no meio das movimentações, dada a minha condição de migrante, consequência do êxodo massivo a que as populações do interior português estiveram sujeitas durante décadas a fio. Em consequência da escassez de meios aqui sempre crescente e por se imaginar que a vida nos grandes centros nos era mais folgada e promissora.
Na pequena aldeia de Moreanes, minha comunidade de nascimento e de infância breve, não residiam mais do que meia centena de habitantes, no final dos anos 60. O ambiente e as condições de vida desta povoação, quando Abril deu Portugal à Luz, eram as de um lugarejo recôndito, escondido e condicionado pelos restos do tempo e dos hábitos medievais. Iluminava-se ainda à luz de candeia de azeite, lavavam-se as roupas nos pequenos riachos, aqui chamados barrancos, defecava-se ao ar livre atrás dos muros das cercas e a saúde era primeiro atendida com mezinhas e rezas de curandeiros, e só raramente no que se imaginava ser um hospital. [Continua]
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