quarta-feira, 27 de maio de 2009

Mértola - O Apogeu e as Quedas - Pág. 2

Um Livro Electrónico
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Nasci aqui sob o jugo de Salazar e de um peculiar braço do Império Britânico, que manteve durante mais de um Século toda esta região dependente da exploração do cobre e do enxofre, depositados nas excepcionais jazidas da Mina de S. Domingos. A 17 quilómetros de Mértola e a apenas 6 da minha aldeia.
Depois de mais de 100 anos de intensa actividade, nesta sua última fase de exploração, em 1963 a poderosa mina inglesa declarou falência. O meu pai foi o último mineiro a abandonar as instalações da empresa, assistindo ao seu total desmantelamento, sem salários até 1966. O que restava da população mineira é mergulhado num fosso de carência e desespero, só comparável aos efeitos dos grandes conflitos terrestres. Perante um total alheamento e silêncio das autoridades governamentais portuguesas.
Aqui existia uma mercearia que nos abastecia de tudo o que as hortas e capoeiras não conseguiam produzir. Ao momento do encerramento da mina, assisti nos meus 7 anos de idade, aos prantos sucessivos das pessoas que vinham pedir géneros a crédito. Sendo as suas dívidas já demasiado antigas para que pudessem pedir fiado de novo com alguma dignidade. Por vezes, o proprietário da loja, de seu nome António Bartolomeu Nolasco, chorava a par de quem lhe pedia. E sempre o observei a ceder. A dar os alimentos na sua solidariedade infinita, que a fome de mais um dia de crueldade não permitia retrair e evitar.
Mértola avistava-se da margem esquerda como um morro escalvado e decrépito. Como símbolo de um Estado e de uma Nação moribundos, há muito distanciados do Mundo e terrivelmente ausentes de si mesmos.
Entrar em Mértola antes da minha primeira partida para Lisboa, era regressar inevitavelmente à mesma sensação de desconforto e repulsa causada pelo nosso primeiro encontro. Nada nela me seduzia. Apenas o seu majestoso e enigmático rio, me sugeria naquele período o fascínio, que a urbe ameaçada na sua ausência de brilho e no seu sono latente, era incapaz de me proporcionar.
A antiga cidade do Império Romano, Myrtilis, foi um importante porto fluvial. De onde o Guadiana se lança sobre as águas do oceano e a tornavam rainha do seu tempo e do seu território. Aqui aportavam os mercadores do ouro e dos tecidos; das vasilhas; das especiarias e dos cereais.
Mas muito antes dos legionários representantes de Roma ocuparem esta região da Península, já aqui se navegava e comerciava intensamente. Por resultado das expedições e assentamentos fenícios, que lhe deram as primeiras formas e lhe esculpiram nas pedras, as letras do seu nome indelével.
Aqui viria a estacionar Viriato, recrutando e treinando homens dos clãs, contra as guarnições romanas a caminho da Bética, hoje o lugar da Andaluzia. Deixando gravada a marca de uma Nação sonhada, medida no seu olhar e na sua enorme sensibilidade desde o alto dos ermitérios. Mas que, o acto cruel do seu assassinato deixaria para todo o sempre inviabilizada.
Se ao invés dos acontecimentos que vitimaram Viriato, os seus objectivos se tivessem consumado, Portugal não se reconheceria pelo nome que tem. Talvez Lusitânia, fosse a palavra chave para o segredo multi milenar, que chegou a traçar em diagonal a linha de conjunção das duas futuras Nações Ibéricas, desde o Nordeste da actual Galiza, até ao extremo Oriental do Termo de Granada.
O secular insucesso de Portugal, é a consequência daquele crime, que despertou a revolta dos Deuses até à eternidade. Tornando claro que qualquer projecto de intenções que se assente em tal ignomínia, será perpetuado no fracasso e conduzido por fim, à extinção. Tal como o foram e serão extintos todos os Impérios. Erigidos na perspectiva da ganância, na apropriação indevida dos recursos ou bens que a outros pertençem, modelados na estratégia dos actos de traição e de sujeição à violência entre os seres humanos.
Que faltará aos Centros de Juízo e Inteligência, a que vulgarmente chamamos Universidades, para entenderem o fenómeno e decidirem que o sentido primordial das orientações, tem de ser radicalmente oposto àquele que têm subscrito, ministrado, e continuam ingénua, malévola, ou estrategicamente a ministrar. [Continua]

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Copyright: Germano Vaz - World Arts Gallery - Sociedade Portuguesa de Autores - 5/2009.

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terça-feira, 26 de maio de 2009

Mértola - O Apogeu e as Quedas - Pág.1

Um Livro Electrónico
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Vi Mértola pela primeira vez, tomando consciência dessa observação quando tinha apenas uns cinco anos de idade.
Minha mãe, ao atravessarmos o Rio Guadiana, da margem esquerda para a direita, onde ficam os poderes, o comércio, o grande volume do seu casario e população, ainda lembrava os restos da segunda guerra mundial, expressos no racionamento de géneros imposto por Salazar a toda população.
Isto obrigava as mulheres a léguas de caminho com cântaros de azeite e sacos de farinha para as fornadas de pão. Muitas vezes, regressando vazios tal como partiram de casa. Por tão longa a caminhada; por tão escassos os alimentos; por tão acre a fome dos humildes; por tão vil e cáustica a acção dos que a provocam.
Na margem esquerda, de onde se observa toda a extensão longitudinal de Mértola, artisticamente colocada sobre o promontório que liga o Rio Oeiras ao Guadiana, ainda estão hoje as fábricas de moagem de cereais implantadas por força da campanha do trigo, agitada no início do Estado Novo. Hoje só aqui estão as estruturas do edifício. Era aqui que as populações se dirigiam, percorrendo a pé ou de burro enormes distâncias, para que lhes coubessem três ou cinco quilos de farinha por família, em cada semana.
Daquela minha primeira visão de Mértola, restou-me uma sensação de tédio que só viria a dissolver-se no fluxo de promessas e generosidade exibida pela Revolução de 25 de Abril de 1974. Acontecimento que vivi já em Lisboa no meio das movimentações, dada a minha condição de migrante, consequência do êxodo massivo a que as populações do interior português estiveram sujeitas durante décadas a fio. Em consequência da escassez de meios aqui sempre crescente e por se imaginar que a vida nos grandes centros nos era mais folgada e promissora.
Na pequena aldeia de Moreanes, minha comunidade de nascimento e de infância breve, não residiam mais do que meia centena de habitantes, no final dos anos 60. O ambiente e as condições de vida desta povoação, quando Abril deu Portugal à Luz, eram as de um lugarejo recôndito, escondido e condicionado pelos restos do tempo e dos hábitos medievais. Iluminava-se ainda à luz de candeia de azeite, lavavam-se as roupas nos pequenos riachos, aqui chamados barrancos, defecava-se ao ar livre atrás dos muros das cercas e a saúde era primeiro atendida com mezinhas e rezas de curandeiros, e só raramente no que se imaginava ser um hospital. [Continua]
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Copyright: Germano Vaz - World Arts Gallery - Sociedade Portuguesa de Autores.
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